Antes do isolamento eu tinha o costume de aparecer no WhatsApp de Marianna Werneck e falar de música, algumas descobertas que havia feito nas pesquisas que fazia por diversão. Ela é até hoje uma das únicas a sempre pedir mais disso. Então com a pandemia e o tempo livre pude me aprofundar em projetos engavetados por anos. Surgiu assim o Cartas Para a Quarentena, inicialmente algo feito só para ela, mas que com o tempo andei mandando pra mais gente.
Hoje estou repostando as Cartas Para a Quarentena #4 e #4.5, que falam sobre o Was(Not Was). Em meio às pesquisas descobri que Sweet Pea Atkinson, um dos vocalistas da banda, faleceu dias antes. Isso fez com que eu ampliasse o projeto e olhasse seus projetos alternativos.
Me peguei com uma nostalgia pela banda hoje e por acaso descobri que Boo!(2008) finalmente está disponível de forma digital. Acabou me motivando a pegar os textos daquela época e repostar aqui.
A postagem a seguir será enorme. Espero que seja interessante.
Cartas Para a Quarentena #4
Dedicado a Hillard “Sweet Pea” Atkinson (1945 - 2020)
Detroit - 1981
A lendária Motor City, referência pelas suas montadoras de carros e seu impacto cultural, entrou na década de 1980 sendo uma vítima de Ronald Reagan. O caos começa a se instaurar na cidade e não para de crescer ao longo desses anos e as pessoas começam a enlouquecer, cada uma de sua forma. Enquanto isso, experimentações musicais acontecem após a loucura disco e o yacht rock dominando as paradas. O caminho está aberto pra se desbravar.
Entram em cena Don e David Was. Produtores e instrumentistas que decidem usar elementos eletrônicos em sua música juntamente com letras incomuns. Depois de alguns anos mixando e tocando em festas e rádios locais, uma banda estava afiada e pronta pra gravar. Don normalmente ficava no baixo e coordenando a produção enquanto David tinha como especialidades a flauta, o saxofone e o vocal falado em faixas diferentes do que já se ouviu. Algo conceitual, mas divertido. É preciso apontar isso porque quando se lê “conceitual” dá pra sentir o interesse de quem vê essa descrição derreter.
Além disso, é preciso citar seus dois vocalistas. Sweet Pea Atkinson é de Detroit como os irmãos Was. Tem uma voz mais rouca, que se complementa bem com a voz de Sir Harry Bowens. Ele não é um cavaleiro britânico, mas alguém que se veste de forma tão elegante que ganha o apelido por merecimento. Ele originalmente era dos O Jay’s e foi contratado pra cantar algumas letras mais voltadas pro nonsense. Também é performático, uma pessoa que dança durante as músicas com a desenvoltura que você imagina desses grupos clássicos como o Temptations e até mesmo o do dele foi. Pois não é só uma questão de cantar bem, o estilo também fazia a diferença. Preferencialmente com o conteúdo.
Agora que estamos devidamente familiarizados, falemos sobre o álbum que começou tudo. Em 1980 houve um single chamado Wheel Me Out que chamou a atenção por ser um funk diferente do que havia na época. Isso os credenciou a ter seu primeiro trabalho completo. Na época com o nome da banda, nos relançamentos chamado de The Woodwork Squeaks, citando o refrão da música mais significativa da história do grupo: Out Come The Freaks.
Out Come The Freaks é um camaleão musical cujo tema sempre é falar das pessoas estranhas que habitam as ruas quando a noite cai. Histórias simples contando absurdos cotidianos. Em 1981 a canção é uma mistura de Good Times(com a vantagem de não ter roubado a linha de baixo da música, como muitos fizeram) e ser algo solto como Rapper’s Delight(um dos primeiros raps da história, um dos roubos mais famosos da linha de baixo criada por Nile Rodgers e que acabei de citar e que inspirou Ragatanga décadas depois). Além de contar histórias sobre pessoas nas músicas que nem o Springsteen, só que sobre gente doida mesmo.
Nem só de absurdos e groove e se vive então também temos Where Did Your Heart Go, que ficou melhor ao vivo anos depois sem toda a produção da época e ainda foi gravada por um certo George Michael ainda no Wham. É só um exemplo de versatilidade. Tell Me That I’m Dreaming por sua vez usa falas de Ronald Reagan pra citar os absurdos da letra. Carry Me Back To Old Morocco é outra que virou favorita dos fãs com sua letra sendo falada enquanto somente o refrão é cantado. É bem melhor do que descrevendo aqui, mas não é minha culpa se em 2020 as pessoas escutam rap acústico(ainda escutam?).
Há algumas coisas com boas letras e se adequando ao pop da época, mas datadas, como Oh Mr Friction, It’s An Attack e Go… Now! O grande destaque experimental é algo chamado The Sky’s Ablaze, onde David Was faz um monólogo sobre seu pai falando coisas surreais enquanto um trompete toca com cada vez mais intensidade.
No fim o álbum é um ótimo cartão de visitas pra banda e pros Was enquanto produtores. O álbum que marquei é a versão original com uma baciada de extras(da faixa 10 em diante). Tem lados B, remixes e coisas de outros álbuns. E ajudou a ditar novas formas de mixar e criar música usando ferramentas eletrônicas, por vezes ajudando a desenvolve-las.
Born To Laugh At Tornadoes(1983)
Tendo as ideias mais desenvolvidas, um contrato melhor com a gravadora e a capacidade de convidar pessoas para as faixas que imaginaram, surge Born To Laugh At Tornadoes. Um álbum que se adaptou em definitivo ao pop de 1983, ainda que com uma pitada ou outra de funk. É algo que diverte até nas faixas mais lentas.
Knocked Down, Made Small, Treated Like a Rubber Ball é um clássico da banda, ue só não virou hit por motivos que tratarei daqui a pouco. Bow Wow Wow é simples e eficiente. Betrayal é a mais triste e séria do álbum, Boa para quebrar o ritmo.
Shake Your Head(Let’s Go To Bed) é uma canção que superou a barreira das décadas. Em sua versão de 1983 tem Ozzy Osbourne falando de coisas impossíveis em um eletrofunk. Uma nova versão em 1992 onde Ozzy divide os vocais com Kim Basinger vira um grande hit no Reino Unido. Man vs The Empire Brain Building é completamente experimental, é só a banda tocando e cantando coisas aleatoriamente.
Então temos a segunda Out Come The Freaks, chamada aqui de (Return To The Valley Of) Out Come The Freaks. Uma versão mais quieta, mais triste, que dá mais peso às histórias desses novos freaks. A versão do álbum tem 4 minutos, mas há uma versão de 8 minutos com a participação da garota do Equador que é citada na primeira Out Comes The Freaks, pois continuidade é tudo.
Professor Night é sobre um rei da noite e suas aventuras vazias na noite. The Party Broke Up é uma vinheta de caos se instalando em festas. Smile é singela e faz exatamente o que o título sugere: sorrir.
Aí temos Zaz Turned Blue. Um drama grandioso, trouxeram a lenda Mel Tormé pra cantar, a história de um cara que… ficou azul depois de o enforcarem de brincadeira(demonstrar movimento, vocês sabem) e mudou completamente. Boa música pra fechar o álbum.
É um bom álbum? Sim. É o melhor deles? Não. Deveria ser mais lembrado? Sim. De fato, a Rolling Stone o apontou como um dos melhores do ano até o momento da publicação. O que houve? Era 1983. Billy Joel lançou An Innocent Man, Elton John fez seu grande retorno com Too Low For Zero, David Bowie se juntou com Nile Rodgers pra fazer Let’s Dance e Michael Jackson lançou uma coisinha a toa chamada Thriller. Isso só de cabeça, o ponto é que foi um ano muito cheio e o impacto de certas obras suplantou outras muito boas. O padrão estava muito alto.
O melhor estaria pra vir, mas levaria tempo.
What Up, Dog(1988)
Houve uma confusão jurídica que impediu lançamentos da banda por 5 anos. É um pesadelo jurídico tão grande que impede a presença do álbum em lugares como o Spotify. Mas eu achei uma preciosa fonte anos atrás que suprirá minhas necessidades pra falar de um de meus discos favoritos. Conheci a banda graças a ele e graças a um filme desprezado pela crítica, mas daqui a pouco eu volto a falar disso.
5 anos sem gravar permitiram observar o cenário, as mudanças de tendências, modas nascerem e morrerem e voltar a ditar tendência enquanto a essência da banda permanece a mesma. E dessa vez com os seus maiores hits. Mas dessa vez o começo de tudo é mais reflexivo com Somewhere In America There’s a Street Named After My Dad, algo sobre esperança, realidade e algo nem tão nonsense assim.
O primeiro hit do álbum é Spy In The House of Love, cheio de metais, um som típico de 1988 e que envelheceu bem melhor que músicas de sua época e num raro caso que o original segue melhor que os remixes. Anos depois Steve Winwood roubou o título e basicamente o conceito pra fazer algo próprio, chegou a ter ameaça de processo, mas a situação foi resolvida fora do tribunal.
Pelo terceiro disco seguido, temos a eterna crônica de malucos que é Out Come The Freaks. Dessa vez a canção volta a ser dançante e no fim cita freaks notáveis. É a única das três que não foi cantada ao vivo em eventuais retornos da banda. Na sequência, a primeira vinheta que divide o álbum, Earth To Dorris. É basicamente um monólogo com um jazz ao fundo sobre absurdos em um motel(“ela fez champagne com vinho barato e Seven Up. É uma química!”).
E assim entramos num arco que de forma torta fala de amor. Love Can Be Bad Luck é uma prima de Ain’t No Cure For Love, só que meio que reclamando de como ao mesmo tempo a paixão é inevitável, mas ela não acaba do nada, quando acaba ela deixa rastros, que podem ferir algum dos envolvidos. Como prova disso, a próxima canção é Boy’s Gone Crazy, que trata da rejeição que um certo Johnny recebeu e seu sofrimento e inconformismo. Ótimo video clip, diga-se.
Como estamos nos EUA, a próxima música após duas sobre coração partido fala sobre o assassinato de JFK. 11 MPH(ou Eleven Miles An Hour) é um clássico da banda, dançante em seus dois mixes, ainda que seja raro achar o original, dos LPS e do CD inglês. Eu mesmo só achei uma vez num LP que eu acabei dando pra uma amiga que tem vitrola. Hoje ela está em Curitiba. É meio que uma lição de história dançante e com um ótimo refrão. Fechando o arco, temos a segunda vinheta, que no caso é a faixa título. Algo quieto, eletrônico e com um monólogo de um cara e seu cachorro que é melhor que um cartão de crédito.
Amores tortos seguem com Anything Could Happen, que tem a forma típica da banda de contar histórias. Essa tem um remix que tocou ao fim de Cegos, Surdos e Loucos. E o clipe feito antes da canção entrar na trilha sonora do filme. Na sequência, o futuro bate a porta com Robot Girl, outra música típica dos anos 80 que envelheceu melhor que outras canções de sua época.
Como usar Mel Tormé deu certo no álbum passado, a aposta foi aumentada aqui. Eles chamaram Frank Sinatra Jr. pra cantar Wedding Vows in Vegas. Ele canta igualzinho ao pai enquanto a letra fala de um casamento barato, simples, artificial de Las Vegas e como os votos de casamento são pra sempre justamente quando se espera o contrário. Anytime Lisa fala de uma moça que passa pela mão de todo mundo porque pra ela é melhor que a solidão. Enquanto isso, tem alguém a querendo tirar dessa solidão pra valer, sem ser um caso breve. Amores tortos, como disse.
Agora, o maior hit da banda. Mas antes, uma breve jornada emocional. O ano era 1993, fizeram um filme que garantiu a má fama de filmes baseados em video game: Super Mario Bros. O que você precisa entender é que sempre tive um carinho por esse filme, apesar e justamente por tudo. É divertido, certamente tentaram algo e falharam. Em compensação se há algo que não falhou aqui foi a trilha sonora. Entre outras coisas tem uma das 3 melhores canções de Roxette nos anos 90 e uma canção que eu levei uns bons 10 anos pra descobrir. Algo que tocava em apenas um cena, mas que ficou na minha cabeça desde o fim da década de 1990(eu tenho o filme gravado direto da Globo numa fita VHS).
Era Walk The Dinosaur, por George Clinton and the Goombas. Eu só achei essa versão muitos anos depois, quando botaram esse CD no Youtube, mas eu achei a versão original por volta de 2008 ou 09 e nunca mais as coisas foram às mesmas. A letra não faz o menor sentido além de se passar na época das cavernas. Se você achar familiar é porque Mark Ronson meio que a roubou pra fazer Uptown Funk quase 30 anos depois, não sei como anda a questão nos tribunais mas o fato de quem faz mash-up não ter trabalho pra juntar as duas pesa contra o craque por trás de Uptown Special, outro de meus álbuns favoritos.
I Can’t Turn You Loose é o clássico de Otis Redding, regravado por basicamente todo mundo e eternizado por ser a canção tema dos Blues Brothers, especialmente quando dão uma volta no shopping. Essa versão tem a letra e a pausa tal qual na apresentação no Night Music, feita meses depois. Shadow and Jimmy é uma coisinha singela, um drama suburbano sobre dois bons amigos que olham, falam e sonham por mulheres fora de seu alcance.
O álbum termina no caos de Dad, I’m In Jail. Essa vinheta, tal qual as outras duas, virou clip num projeto da MTV chamado Liquid Televison. Pois um dia eles tocavam clips e experimentavam com humor e outras coisas na programação. Como fazer uma continuação de sucesso de algo artísticamente posicionado no momento certo? É possível manter suas raízes após um grande sucesso comercial?
Are You Okay?(1990)
Dá. Se eles tivessem se traído aqui, não estaríamos tendo essa conversa hoje. Me lembro que comprei esse CD lá em 2010 por uns 2 dólares. Pra minha surpresa, ele chegou a mim somente com o CD e o encarte. Nada de capa. O anúncio do eBay não falava disso, mas paciência. Parafraseando uma música já citada hoje “As long it has the tracks, I figure what the heck”. Arranjei uma capa e tudo ficou bem.
É um álbum mais dançante que o último. A faixa título já denuncia isso. Tudo está no lugar, As tramas aparentemente banais, o baixo comendo, histórias sendo contadas. E às letras seguem exageradas, absurdas e só fazendo sentido a longo prazo, até porque numa pista de dança você não vai pensar necessariamente na letra do que te faz dançar.
O grande sucesso do álbum, por assim dizer, vem na sequência. A regravação da eterna Papa Was a Rollin’ Stone. A original do Temptations é um dos maiores hits de todos os tempos(11 minutos no mix original, 4 de abertura). Regravações com roupagem moderna são uma responsabilidade enorme, especialmente naquele tempo onde havia um respeito maior pela história. Um clássico do soul é regravado com elementos de rap e um convidado mandando umas rimas no meio. Tudo pra dar errado. E deu tudo certo. Um exemplo a ser seguido no que diz respeito a reimaginação de canções históricas.
A impressão que fica de certa forma é que houve uma inspiração no conceito de Sleeping With The Past(1989) em alguns momentos. Se inspirar em canções e pessoas do passado pra criar algo novo. I Feel Better Than James Brown é escancarado nisso e seguindo a lógica de não ter lógica na letra e ao mesmo tempo tendo coisas magníficas.
“Quando estávamos apaixonados, eu fingi que você não existia. Desse jeito, eu te amava mais.”
Obviamente referencia I Feel Good, de James Brown, tanto no título quanto na frase antes do refrão quanto pelo sample de metais(é fácil de reconhecer). Um clássico cult da banda.
How The Heart Behaves é tipicamente noventista, mas como eu já falei de outras músicas aqui, envelheceu melhor que outras canções da mesma época. Extremamente dançante pra falar de como não dá pra apelar tanto pra razão, pois o coração vai sempre te levar de volta pra mais do que você tinha(e lhe faz mal).
Na sequência, numa tristeza dançante, Maria Novarro. Baseada diretamente na morte de Novarro e relatando como a polícia de Los Angeles fez pouco caso do pedido de socorro quando seu marido estava a caminho de sua casa armado, que ele já tinha batido nela antes. Além de citar as raízes americanas desse comportamento tendo como exemplo James Brown citando outra de suas músicas. Eles já apontavam os erros desse comportamento bem antes do assunto entrar em voga, nada mal.
I Blew Up The United States conta de um americano que narra como explodiu seu país. Absurdo, mas levado a sério, o que deixa tudo mais divertido. Deixando o nonsense melhor ambientado, temos In K-Mart Wardrobe, que trata de coisas absurdas que podem ser vistas num daqueles mercados enormes que tem nos EUA. Anos antes do Wal Mart virar um fenômeno ou daquele episódio de South Park.
E aí voltamos ao momento de reverência ao passado. Você deve ter notado o palco lotado no vídeo de Can’t Turn You Loose. Duas das mulheres ali(uma em cada microfone num vestido preto) são backing vocals de Leonard Cohen, que depois de ve-los no programa topou colaborar com um monólogo da jornada emocional sobre encontrar o símbolo de um símbolo e levá-lo pra casa: Elvis’s Rolls Royce. E sim, eu estou perfeitamente ciente que o rock foi criado pelos negros, foi popularizado para as massas de forma definitiva quando Elvis surgiu, mas da ultima vez que chequei, não colaborei pra esse debate patético que diminui a importância de um pra dar importância pra outro artista que teve sua importância. A História não pode passar por cima da vivência de cada um, especialmente se for pra ser reescrita por gente desqualificada que só quer se passar como superior moral. Grande música.
Dressed To Be Killed marca o retorno de G Love E, o rapper de Papa Was a Rollin’ Stone. Outra canção dançante, fala sobre uma pessoa altamente azarada. O título é uma paródia com o filme Dressed To Kill.
Então temos a melhor canção anti romântica já feita, por mais que o tom diga o contrário. Just Another Couple Broken Hearts. Um casal que admite que seu amor não foi nada de mais e que nenhum drama deve ser feito, há coisas mais importantes a se pensar. É o oposto de uma Wasted Days. E a forma que termina faz pensar em algo morrendo aos poucos, uma decadência, algo que lembra aquele começo de Who Needs The Young.
You! You! You! é basicamente ao mesmo tempo absurda mas com alguma coerência. Provavelmente o motivo do céu estar em chamas em The Sky’s Ablaze lá no primeiro álbum poderia ser o desastre aéreo iminente dessa música e parecer bonito no chão justamente por ser um devaneio ou uma simples questão de perspectiva.
Look What’s Back é aquilo que todos deram falta a essa altura do disco. A quarta Out Come The Freaks. Dessa vez é só uma vinheta de 40 segundos com o refrão no violão e as palmas. No fundo tudo isso foi só uma grande quarta versão da canção separada em faixas? Não, mas se Don Was aparecer 30 anos depois confirmando essa teoria, ficaria surpreso.
É um bom álbum, que de certa forma ditou tendência e consolidou os Was enquanto produtores e a banda enquanto uma força de estúdio. Uma coletânea foi lançada em 1992 com algumas coisas novas junto com clássicos e remixes. How The Heart Behaves ganha um versão acústica que já escutei nas rádios daqui décadas depois, Are You Okay ganhou um remix e Shake Your Head ganhou um remix originalmente gravado com Madonna em 1983, mas lançado com Kim Basinger que atingiu o #4, sendo um dos grandes hits de uma outra tendência da música eletrônica: o house.
A banda se separou depois da coletânea porque os compromissos enquanto produtor estavam se sobrepondo aos do grupo. Don Was foi produzir alguns dos maiores hits dos anos 90, sendo premiado até hoje por seus trabalhos e também fez o tema de Mad About You enquanto David fez a trilha sonora de Arquivo X e foi escrever por aí. O que torna o álbum a seguir um bônus pra você que chegou até aqui, na próxima vez que eu retomar o tema de gente pioneira da música eletrônica iremos para a Europa.
Boo! é outro que comprei na década passada no eBay quando o dólar era baixo. E fiz o certo, pois depois de 10 anos não há sinal dele nos streamings a não ser por alguns remixes de algumas faixas específicas.
A essa altura não há ilusões sobre surpresas, ser o #1 da Billboard, afinal, o mundo mudou completamente. O mundo mudar não quer dizer que tenha deixado de ser absurdo ou que não possa ser usado em seu humor sombrio. Pelo contrário. Todos estão de volta, mas é como se nunca tivessem saído.
Semi Interesting Week dita o ritmo de tudo. As histórias seguem sendo contadas, seguem sendo absurdas ou indo pra um lado mais misantrópico. Quem sentia falta das coisas mais absurdas ou mais funky enfim encontrou o seu lar no refrão. Também é uma boa música ao vivo.
It’s a Miracle é algo mais suave contando histórias simples que podem ser milagres ou não. A última certamente é. Your Luck Won’t Last é absurda e dançante. Lembra um pouco I Feel Better Than James Brown.
From The Head To The Heart é suave, poética, focada e bonita a partir do momento que você se dá conta do que se trata o título da música. Big Black Hole trata da solidão e de chances perdidas. Needletooth é um bom e velho monólogo, dessa vez sobre um alien reportando sobre a Terra chuto eu que haja alguma influência dos tempos que David Was fazia a trilha sonora de Arquivo X.
Forget Everything tem algo interessante logo de cara, quem escuta a introdução com atenção pode notar ao fundo uma voz falando “one… two… three…” marcando o compasso da música até que se comece a cantar. Achei incomum. A canção é uma das mais movimentadas do álbum e fala como lidar com a loucura nos dias atuais, algo que vocês jovens chamam de fingir demência.
Crazy Water é essencialmente plágio do menino Steve Cropper, mas como ele nunca reclamou deve estar tudo certo. A letra é diferente, há registros da música ser cantada pela banda ainda em 1992, mas a estrutura é muito igual à de 634-5789 pra ser ignorada. Ainda assim, grande música.
Mr. Alice Don’t Live Here Anymore é uma parceria dos Was com Bob Dylan que originalmente seria gravada por Paula Abdul. Sendo gravada pelos Was e pela letra parece algo falando como os tempos e o cenário mudou, como o cenário pro art-funk está desaparecido. As coisas se fecham com Green Pills in the Dresser, onde Kris Kristofferson assume os vocais enquanto viaja com as pílulas do título. É uma forma mais suave de se despedir que o habitual.
Um ótimo álbum. Como era esperado, depois dele David Was voltou a escrever sobre golfe, Don Was foi tocar baixo em álbuns do Ringo Starr de novo e eventualmente reúne a banda no formato Detroit All Stars pra manter todo mundo em forma. Ultimamente eu venho implorando que gravem um último álbum uma vez que o caos está no ponto certo para mais letras absurdas, mas só me resta esperar.
Infelizmente os últimos dois álbuns citados são difíceis de achar na internet, ao contrário de algo aqui e ali. Com isso, quem receber esse texto terá acesso aos dois CDs via link do Google Drive, devo subir os dois daqui a pouco. É o mínimo que posso fazer.
Extras
Eu citei a questão da origem do rock lá em cima, então vale a pena botar a visão do saudoso Little Richard sobre isso.
Falando em gente saudosa, eu acabei de descobrir que Sweet Pea Atkinson, o de chapéu nos vídeos, morreu agora no começo do mês. Ultimamente eu tinha voltado a pensar em como a banda podia se reunir pra mais um álbum, eu enfim esbarrei no álbum novo dele(o qual eu espalhei pra algumas pessoas) e agora isso. Justo quando estou terminando esse texto. Fiquei abalado. E nem é que eu tivesse ilusões de vê-lo ao vivo, mas é a questão formativa por trás de tudo. E eu nunca ia imaginar que ele já tinha quase 75, mas é como Don Was falou, aparentemente ele era alguém que parecia maior que a vida, você não imagina envelhecendo e morrendo. Eis aí minha reação em primeira mão.
Enquanto isso, fique com o Night Music completo de 1989, Leonard Cohen em seu retorno triunfal, Sonny Rollins e Was(Not Was). Claro, é em inglês, mas se for o caso vale a pena adiantar as partes que apresentam os músicos e ir direto ao ponto. Os apresentadores são bons músicos também, David Sanborn e Jools Holland. Note que alguns dos vídeos ao vivo são do programa do Holland, que ainda está no ar na HBO.
Cartas Para a Quarentena #4.5
No fim da última carta eu descobri a morte recente de Sweet Pea Atkinson, algo que me emocionou. Não dá mais pra falar do que poderia acontecer(ele ia gravar um álbum de blues esse mês), mas isso me motivou a terminar de traçar uma certa linha evolutiva na qual ele tem papel central e envolve diretamente Was(Not Was). Pra minha felicidade e surpresa os álbuns a seguir estão disponíveis no Spotify e ainda estou nas primeiras audições, ou seja, levarei algum tempo pra tecer considerações profundas. Mas nesse momento é importante ter música nova pra se ouvir. O fato dela ser de mais de 25 anos atrás ou de 2017 é irrelevante.
Um ano após seu álbum de estreia, os irmãos Was e a banda deram todo o apoio em estúdio para que Sweet Pea fizesse seu primeiro álbum, dessa vez com músicas mais normais que o material habitual da banda. Daí saiu um álbum completo, que por algum motivo o Spotify só tem um EP com 3 faixas. Dance Or Die virou uma favorita das pistas de dança de Detroit e região. Don’t Walk Away é o lado B enquanto Should I Wait é a faixa romântica do trabalho. Essa inclusive sobreviveu o teste do tempo e figurou em 2010 no Pick Of Litter(1980 - 2010), a coletânea remasterizada da banda. Um bom trabalho de transição. Girls Fall For Me é hilária e ficou de fora. Assim como a versão de Anyone Who Had a Heart.
Orquestra Was - Forever’s A Long Long Time(1997)
Quando Was(Not Was) se separou após os problemas de agenda, não é que ficaram sem trabalho. Em 1997 Don Was reuniu boa parte da banda para um projeto incomum: um álbum de jazz/R&B de covers de Hank Williams. E covers obscuros, ainda por cima. Dar uma roupagem contemporânea a músicas country esquecidas é um grande conceito, o reverso da moeda em comparação fazer músicas novas no estilo de cantores antigos e replicar a alma clássica dessas músicas(vide Zaz Turned Blue, Wedding Vows In Vegas, Elvis’s Rolls Royce).
Sweet Pea é o titular absoluto nos vocais aqui. Apenas na última faixa Merle Haggard toma a dianteira e há um country clássico, com slide guitar e acordeão, bem bonito. Há uns nomes interessantes envolvidos nesse álbum. Sir Harry Bowens e Donald Ray Mitchell, os outros vocalistas dos Was colaboram, tal qual a lenda Herbie Hancock e minha baterista preferida(e protegida do Prince) Sheila E.
Por ter tanta gente virtuosa, as músicas podem se prolongar um pouco, não que isso seja um problema aqui. Um bom conceito, parece levemente inspirado por Doo Bop(1992), o último álbum de Miles Davis, onde ele decidiu juntar os elementos de seu trombone com o hip hop.
Boneshakers - Book Of Spells(1997)
Ao mesmo tempo, Randy Jacobs, guitarrista de Was(Not Was) e co-autor de Walk The Dinosaur, recruta Sweet Pea para um projeto mais voltado para o soul e o R&B. Tornando as coisas mais funky. E mais clássicas.
Cold Sweat é um clássico de James Brown que virou uma canção típica dos Was quando voltaram a fazer turnê em 2005. I Blew Up The United States é regravada aqui. Mas a maioria do material aqui é de Jacobs. É interessante pensar na quantidade enorme de gente com a qual eles trabalharam depois da notoriedade com Was(Not Was) e ainda assim nada soa mais autêntico e confortável como o retorno pra casa.
É um bom álbum de introdução ao R&B clássico, tal qual os Blues Brothers foram para o resgate do interesse público no gênero na década anterior. E ao mesmo tempo há momentos em que a guitarra é a força motriz do ritmo, o funk está vivo nesse álbum e os vocais só amplificam a experiência.
A banda teve uma boa carreira nos EUA, com mais alguns álbuns e reconhecimento, pelo que estou apurando. Novas músicas a explorar, só vitórias apesar de tudo.
Don Was nunca foi embora de fato, sempre andou produzindo ao longo das décadas e eventualmente sendo premiado, mas faltava uma reparação histórica. Uma vez que além das funções de produtor ele agora é produtor da Blue Note Records, era possível aprontar o segundo álbum solo da carreira de Sweet Pea, a essa altura ainda um colosso vocal de 72 anos.
É uma carta de amor a vocalistas como ele, que a cada dia são mais raros. O álbum abraça suas capacidades com perfeição e ao mesmo tempo nada disso seria possível se não houvesse alguém como ele cantando coisas que acredita por 5 décadas. Música como essa morre aos poucos quando pessoas como ele morrem e não aparece gente para manter a chama viva. É como os deuses antigos vendo seu enfraquecimento em Deuses Americanos.
O melhor é celebrar os bons momentos e o álbum está cheio deles. É um bom álbum pra fechar o ciclo brilhante de uma carreira. Eu não tenho muito o que analisar aqui, o melhor aqui é aproveitar mesmo.
A segunda canção, Slow Down, tem registros de quando Was atualizava o canal de Youtube com convidados.
Pra terminar, o vídeo que me renovou a esperança de um album novo quando esbarrei nele no fim de abril. Isso aqui é de outubro de 2019, 7 meses atrás. Tá todo mundo bem e com a voz no lugar. Dava pra sonhar e algo ia acontecer. De partir o coração. Mas as músicas ficam e estou aqui espalhando nessas linhas tortas.