Malcolm McLaren(1946 - 2010) era notoriamente um homem cheio de truques no mundo da música, seja nos tempos de empresário de bandas como o Sex Pistols ou o Bow Wow Wow, ou então em sua curiosa carreira solo, mesmo sem saber tocar instrumentos.
Normalmente ele se junta à gente talentosa que transforma suas ideias em algo real(e geralmente muito bom). Em Duck Rock(1983) ele serviu como um dos expoentes da world music, divulgando talentos de outros continentes para o principais centros econômicos culturais, conceito que depois Paul Simon ampliou com Graceland(1986). Além de ter ajudado a promover o rap no Reino Unido. Em Fans(1984) ele misturou pop/disco com óperas, algo que mais tarde foi expandido em Waltz Darling(1989), com colaborações ilustres de Jeff Beck e Bootsy Collins e também divulgando o conceito de vogue, casas de ballroom e nomes como Willie Ninja pouco antes de Madonna sugir com seu hit.
Então o ano é 1993 e não há mais Trevor Horn(que produziu seus dois primeiros álbuns) ou o pessoal de Waltz Darling. E também não muita paciência com a Inglaterra. Assim ele se manda para um sótão francês com equipamentos de segunda mão, sem músicos renomados para poder pegar prestígio emprestado. Trabalho duro viria a frente. Então ele fez o mais apropriado quando se está em Paris.
Foi atrás de mulheres. Um ano e quatro encontros depois, o resultado é o que vem a seguir.
Paris(1994) é uma carta de amor que não tem medo de ser ou parecer piegas, de ser um diário de visões, fantasias, alimentar ilusões e folclores. Um mapa de sentimentos, como o próprio McLaren afirma na contracapa. São sonhos acordados de uma cidade embebida em jazz, mas também com espaço para ritmos mais africanos, ritmos mais intensos que o estilo de Miles Davis(que tem seu romance com Juliette Gréco contado em Miles and Miles of Miles Davis). E também não tem vergonha de mergulhar em certos clichês, como regravar Je T’Aime Moi Non Plus.
Malcolm McLaren não é propriamente um cantor, em boa parte do tempo ele recita com um fundo musical ao fundo e eventuais refrões entoados por um coro feminino. É como se ele estivesse falando sozinho enquanto anda na rua, mas ao invés de louco, se passa por alguém interessante. As ideias de suas fantasias são bem construídas, como as das noites parisienses.
A primeira mulher que encontra é Catherine Deneuve, que também não canta, mas é musa e símbolo do cinema francês e mundial na segunda metade do século 20. A pessoa pra quem o Alceu Valença fez Belle de Jour(que por sua vez foi um de seus filmes mais notáveis). Com ela, Malcolm grava Paris Paris, onde ambos recitam em inglês e francês, conversam entre si, enquanto há um fundo musical e um refrão que gruda.
A segunda mulher que encontra é Amina, uma cantora franco-tunisiana de grande sucesso em seu país que bota sua voz a serviço de uma canção que exalta a mulher parisiense, La Main Parisienne. Suas vocalizações são típicamente do norte africano, faz pensar o quanto a França já se mostrava diversa culturalmente no começo da década de 1990, onde discussões do tipo não estavam tão em voga.
A terceira mulher que encontra é Françoise Hardy(1940 - 2024), clássica cantora de baladas que colabora com Revenge of The Flowers. O álbum segue como se fosse uma história e quando se trata de Paris, sempre volta pra amores, dando certo ou não. Um dos que mais dá certo é o pela cidade, simbolizado por Anthem e seu incrível coro senegalês.
A quarta e última mulher nem foi usada como selling point do álbum, curioso, tendo em vista que Sonia Rykiel(1930 - 2016) era uma estilista famosa desde os anos 60. Ficou com a honra de ter a última faixa do primeiro CD, Who The Hell Is Sonia Rykiel. Aqui ele e Malcolm conversam em inglês e francês enquanto Amina retorna cantando ao fundo.
Primeiro CD, pois esse álbum é duplo. A segunda parte contém remixes mais dançantes misturando elementos de todas as faixas, dando até mesmo uma coesão maior pro projeto. Também há uma versão desse segundo álbum com algumas faixas extra.
A primeira vista um projeto desses, que completa 30 anos em 2024 em plena semana de Olimpíadas, pode parecer anacrônico. A cidade embebida em jazz, no pessoal da geração ye-ye está dando lugar a algo mais real e menos fantasioso, o que explica a tal Síndrome de Paris. Ao mesmo tempo, é um trabalho que além de fortalecer a mitologia local, mostra de forma natural as influências que os imigrantes(e seus eventuais filhos) trazem para mostrar o que será a a Paris de amanhã.
Um álbum de 1994 que é históricamente tido como a aposta de um farsante do rock and roll pode ajudar a compreender a Paris dos Jogos Olímpicos de 2024. Como apesar dos protestos da extrema direita é possível ter uma Aya Nakamura(cuja família tem origem em Mali) cantando na abertura juntamente com a guarda militar. Ou ter um casal de atletas negros acendendo a pira olímpica.
Talvez eu esteja certo nessa divagação, ou simplesmente sonhando acordado.